Por Raul Haidar
O que vemos hoje na execução e administração de serviços tributários das empresas permite-nos concluir que os contribuintes ainda estão muito longe de encontrar um ambiente que permita a consecução da Justiça Tributária.
Outrossim, qualquer pessoa que atualmente exerça atividades na área tributária ou contábil faz parte de uma instituição que há muito se integrou ao ramo das ciências psiquiátricas, não das ciências contábeis.
Isso explica, em primeiro lugar, a dificuldade de encontrar jovens dispostos a dedicar-se a tais tarefas, havendo diversas universidades que já não recebem a mesma quantidade de alunos para seus cursos de contabilidade. E os que lá estudam, em boa porcentagem objetivam procurar trabalho no serviço público, como auditores do fisco. Já há casos de empresas ou mesmo escritórios de contabilidade que não conseguem recompor suas equipes quando alguém delas se afaste. O único aspecto positivo é a melhoria salarial desses trabalhadores.
Não estamos exagerando ao falarmos em esquizofrenia fiscalista. Não vai aqui nenhuma preocupação com rigor científico, mas apenas a constatação do quadro típico dessa doença.
Uma visão muito precisa disso está no filme “Uma mente brilhante”, sobre a vida do matemático John Nash, que ganhou o Oscar de melhor filme em 2002. O protagonista tinha alucinações e visões que o faziam viver fora da realidade.
Pois é isto que acontece hoje com o contribuinte brasileiro em geral e especialmente com os que trabalham na área tributária das empresas.
Há alguns anos, por exemplo, a Receita Federal provocou um grande tumulto obrigando todas as empresas a recadastrar o CGC, que foi transformado em CNPJ. Anunciou-se que haveria uma unificação nacional de todos os cadastros das pessoas jurídicas, permitindo que numa única repartição a pessoa jurídica obteria sua inscrição, que seria uma só para os 3 entes tributantes: união, estado e município.
Até hoje qualquer empresa por menor que seja é obrigada a enfrentar os três níveis de fiscalização, os quais não se comunicam para completar a inscrição ou facilitar a burocracia, mas que são muito ágeis quando se trata de criar um problema qualquer para o contribuinte.
Ora, falar uma coisa e fazer outra é sem dúvida uma espécie de alucinação. Muito provavelmente as autoridades fazendárias à época e ainda hoje estão tendo visões e vivendo uma realidade que só existe na sua imaginação. Enxergam um cadastro eficiente, que não existe. Criam programas de computador que não funcionam, que são instáveis, que não possuem segurança, anunciando-os como a oitava maravilha do mundo, quando não passam de “sistemas” esquizofrênicos que funcionam a partir de visões fantasiosas.
A Receita Federal, alegando que pretende coibir sonegação que pessoas físicas estariam fazendo com abatimentos indevidos, resolvem intimar milhares de pessoas, glosando abatimentos legítimos. Já se chegou ao absurdo de cobrar do empregado o imposto retido pelo empregador e por este não recolhido, contra expressa norma regulamentar. Também cobrou-se expressivo valor desconsiderando pensão alimentícia fixada em juízo e descontada na folha de pagamento, porque o contribuinte estava viajando a trabalho quando foi intimado. Conversa de quem sofre alucinações: o fiscal disse ao contribuinte que quando ele se ausentar deve deixar um representante para receber intimações! Deve haver algum alucinógeno naquele café que servem na repartição!
Por outro lado, a Secretaria da Fazenda deste Estado resolveu legislar por portarias, totalmente ao arrepio da norma constitucional da legalidade absoluta. Outra forma de esquizofrenia, pois imagina-se que a portaria criada pelo burocrata de plantão vale como a lei, esta rebaixada à categoria de algo que flutua conforme as alucinações de quem a vê. Um caso bem típico é a Portaria CAT 79/2003 que pretende regular a emissão de notas fiscais por meio eletrônico e que já sofreu inúmeras alterações. Essa monstruosidade jurídica é quase um livro, com cerca de uma centena de páginas, sofrendo mudanças com uma frequência absurda.
Se um contador pretende manter-se atualizado com tanta mudança, deverá instalar-se em Vênus, onde os dias têm cerca de 5.800 horas! Talvez não seja por acaso que um contador que me prestava serviços morreu ainda jovem, enquanto uma jovem contadora largou o trabalho e formou-se em psicologia.
Nessa história da Portaria CAT-79 o que mais prejudica o contribuinte é que são exigidas informações que parcialmente já foram prestadas ao fisco, aplicando-se multa proporcional ao volume das informações, chegando em alguns casos a valores astronômicos, totalmente acima da capacidade contributiva do autuado.
Já comentamos neste espaço, em 19 de setembro de 2011, a necessidade de se criar limites para as multas tributárias, sob pena de criarmos injustiças e incentivarmos atos de corrupção.
O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, na ADI-MC 1075/DF votou no sentido de que as multas devem ser limitadas e não é admissível multa com efeito nitidamente confiscatório, afirmando:
“É inquestionável, Senhores Ministros, considerando-se a realidade normativa emergente do ordenamento constitucional brasileiro, que nenhum tributo – e, por extensão, nenhuma penalidade pecuniária oriunda do descumprimento de obrigações tributárias principais ou acessórias – poderá revestir-se de efeito confiscatório. Mais do que simples proposição doutrinária, essa asserção encontra fundamento em nosso sistema de direito constitucional positivo, que consagra, de modo explícito,a absoluta interdição de quaisquer práticas estatais de caráter confiscatório, com ressalva de situações especiais taxativamente definidas no próprio texto da Carta Política (art. 243 e seu parágrafo único).”
Ora, se houve uma infração regulamentar ou descumprimento de obrigação acessória, a multa não pode superar o valor do imposto. E deve ser reduzida, quando o imposto tenha sido pago. Isso é Justiça.
Imaginar que a multa pode ser absurdamente elevada porque o contribuinte esqueceu de enviar um formulário ou um arquivo, é viver fora da realidade, como se o contribuinte fosse vítima do Estado, como se o contribuinte fosse objeto da sanha arrecadadora sem princípios de uma burocracia delirante, que se imagina acima de tudo e de todos.
Não podemos compactuar com uma administração fazendária que baixa atos sem suporte legal e os utiliza para lançar multas absurdas, capazes de decretar a morte econômica de uma empresa. Não podemos esperar mais. Precisamos já de Justiça Tributária.
Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.